Efeitos da Pandemia nas Produções Artísticas, Musicais e Cinematográficas

Efeitos da Pandemia nas Produções Artísticas, Musicais e Cinematográficas

A pandemia mundial recentemente instaurada em função do novo Coronavírus trará prejuízos sem precedentes para a indústria do entretenimento. Milhares de shows e eventos cancelados, produções suspensas e contratos não cumpridos.

Nesse contexto, produtores, artistas e empresas buscam soluções para contornar os problemas que decorrem do fechamento dos estabelecimentos, proibição de conglomerados e eventos sociais, restrições de acesso, e outros incidentes que afetam diretamente a produção.

Muitas dessas soluções já constam da lei e outras estão sendo trazidas pelas novas medidas do Governo, que têm reflexo direto nas relações contratuais, consumeristas e trabalhistas.

A começar pelos efeitos do reconhecimento do estado de calamidade pública.  Esse reconhecimento é inédito em nível federal e torna imprescindível a atuação do Estado na contenção da disseminação do vírus, permitindo-lhe, caso necessário, impor restrições a direitos individuais e constitucionais (como “o direito de ir e vir”) sem precedentes para nossa geração. A liberdade econômica também é fortemente afetada – fechamento temporário de estabelecimentos comerciais, suspensão de atividades e dispensa de empregados. Tudo se faz em nome de um único princípio: a primazia do interesse público, que sempre estará acima dos direitos individuais e das atividades econômicas.

Quais as consequências disso?

A primeira é que a administração ficou dispensada dos limites do endividamento, metas fiscais e contingenciamento das despesas para custear as ações de combate à pandemia. Desde 2014 as contas públicas estão no vermelho e, portanto, espera-se uma grave recessão que afetará ainda mais a área das artes e entretenimento, que já vinham sofrendo com a falta ou suspensão de recursos públicos e com a dança das cadeiras e pastas que se estabeleceu na Cultura desde janeiro de 2019. O posicionamento do Governo pela diminuição dos incentivos públicos à cultura, aliado ao vindouro endividamento do Estado, certamente não traz uma estimativa de injeção de recursos públicos na Cultura a curto ou médio prazo, o que deixaria o tema nas mãos das empresas privadas. Restaria saber se, após o caos, as empresas terão saúde financeira para novamente empenhar recursos em patrocínios de eventos e produções.

Nessa esteira, foi editada em 22 de março de 2020 a Medida Provisória 927 que claramente protege interesses das empresas e empregadores, alterando a legislação trabalhista de forma temporária e com o objetivo de criar alternativas para enfrentamento do período de calamidade pública.

Tais regras (e esperamos aditamentos a qualquer tempo) têm aplicação imediata e valerão enquanto perdurar o estado de calamidade pública. Dentre as quais: 1) o tempo de uso de aplicativos de comunicação (WhatsApp) com o empregador não caracteriza tempo à disposição, regime de prontidão ou mesmo sobreaviso, salvo se houver previsão contratual, 2) o empregador pode antecipar as férias dos empregados, mesmo antes de transcorrido o período aquisitivo, com prioridade para os empregados que pertençam ao grupo de risco, 3) a critério do empregador, poderão ser concedidas férias coletivas sem muitos dos limites da atual CLT, 4) pode-se antecipar o gozo de feriados não religiosos (os religiosos dependerão de anuência do empregado) e os feriados gozados poderão ser usados para compensação do banco de horas; 5) o empregador poderá suspender as atividades e instituir banco de horas a ser compensado pelo empregado em até 18 meses após o fim do estado de calamidade. 6) suspende-se a obrigatoriedade do recolhimento do FGTS até maio de 2020.

A Medida Provisória também definiu que os casos diagnosticados de Covid-19 não serão considerados como doença ocupacional, exceto mediante comprovação de nexo causal.  Portanto, o empregado precisará comprovar que contraiu o vírus durante a jornada ou deslocamento para o trabalho. Notável que, em se comprovando tal fato, haverá responsabilização dos empregadores por conta de contaminação (especialmente, em caso de morte ou de sequela no empregado).

Já nas relações entre pessoas jurídicas, assim como nas contratações informais, boa parte das soluções podem ser encontradas nos conceitos de caso fortuito e força maior para fundamentar a isenção de obrigações, diminuição de responsabilidades ou mesmo rompimento unilateral do contrato sem pagamento de indenização.

Lê-se do artigo 393 do Código Civil: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”

O caso fortuito é mais frequentemente definido como aquele proveniente de um ato humano (greve, guerra, etc.), enquanto o de força maior se relacionaria a adventos decorrentes das forças da natureza (tempestade, inundação). Entretanto, o próprio STJ não vem se preocupando com a distinção, bastando que em qualquer dos casos se verifique a presença de dois elementos: 1) que o fato seja impossível de prever, e que 2) não seja “necessário”, ou seja, que o contratante ou devedor não tenha para ele contribuído para se declarar o excludente de responsabilidade.

Mas a questão requer atenção. Se a pandemia será considerada motivo de caso fortuito e/ou força maior a afastar responsabilidade do contratante, o mesmo não se aplica necessariamente às suas consequências.

Enquanto a pandemia era absolutamente impossível de se prever meses atrás, a exclusão de responsabilidade pode não se aplicar, por exemplo, no caso de uma contratação havida hoje para um evento que ocorrerá em setembro.   É no mínimo razoável afirmar que o contratante assumiu o risco de que o negócio não ocorresse ou não surtisse o resultado esperado, pois poderia prever que as consequências da pandemia se estenderiam por longos meses.  Assim, salvo previsão específica no contrato, ambos contratantes assumem a risco (álea) do negócio e podem ter que arcar com altos prejuízos, inclusive perante terceiros. Daí a importância de que novos contratos firmados prevejam razoavelmente para o futuro todos os possíveis desdobramentos da pandemia, evitando discussões e incertezas futuras.

Para afastamento da responsabilidade, é também relevante que o fato tenha efeitos que não poderiam ser evitados pelo contratante. São inevitáveis aqueles efeitos que impossibilitam a entrega do trabalho executado ou que geram dificuldade tamanha ao contratante que modo que dele não se poderia exigir conduta diversa senão o descumprimento daquilo a que se comprometeu.

Sob essas premissas, uma doença grave e inesperada que impeça o cumprimento do contrato por um diretor ou mesmo roteirista (que, como seria de se esperar, poderia seguir suas atividades em home office sem sequer alteração de rotina) seria, sem dúvida, um excludente de responsabilidade a justificar atrasos e falhas de cumprimento. Todavia, se a disseminação da doença já era conhecida mas não foram por ele adotadas as medidas largamente divulgadas que serviriam para impedir o seu próprio contágio, o cenário se altera.  No mínimo, ele assumiu o risco da contaminação.

Na ausência de acordo prévio, a alegação do caso fortuito e/ou de força maior exigirá a caracterização de um fato alheio ao melhor zelo do contratante e que não seja por ele causado, ou seja, “cujos efeitos não seria possível evitar ou impedir”.

Fato é que a simples ocorrência da pandemia e do estado de calamidade em que nos encontramos não basta para isentar o devedor ou contratante de cumprir sua obrigação. O mesmo ocorrerá, por exemplo, se uma consequência futura da pandemia simplesmente dificultar ou encarecer uma produção. A princípio, seu cancelamento dependerá que se comprove que houve uma barreia intransponível ao cumprimento do contrato.

Importante focar na causa do inadimplemento e considerar que o simples fato de ter existido uma pandemia não exime qualquer das partes de responsabilidade.  Sempre que ao contratante for possível adotar medidas razoáveis para garantir o cumprimento do contrato, a inevitabilidade cai por terra e ele pode ser responsabilizado. Daí a extrema relevância de se ter prova do fato causador do descumprimento da obrigação e, sempre que possível, documentar as ações que foram tomadas para evitá-lo.

Se o contratante puder minimizar o dano ao outro contratante; por exemplo, comunicando-o assim que possível da impossibilidade de cumprimento da obrigação; certamente mitigará os prejuízos assumidos pela outra parte e menos poderá se responsabilizar por eles.

As boas práticas contratuais também acenam para a boa-fé de ambas partes para que, já cientes dos eventos incertos futuros do porvir, renegociem desde já os contratos firmados a fim de viabilizar sua execução, suspender seus efeitos em comum acordo ou mesmo rescindi-los, considerando as atuais limitações impostas pelas condições sanitárias e pelo poder público.

Como conclusão, temos que a pandemia em si pode ser caracterizada como um ato de caso fortuito ou força maior a afastar responsabilidades, mas não necessariamente seus desdobramentos.   Cada caso deverá ser avaliado sob as leis vigentes e que virão a ser promulgadas que, por si, não são possíveis de se prever como um todo.

Em qualquer circunstância, as medidas adotadas pelas partes e sua agilidade em dar solução eficaz para contornar as dificuldades de cumprimento serão relevantíssimas para o afastamento ou redução da responsabilidade pelo inadimplemento.  A resposta estará na análise de cada caso concreto e não prescindirá da aplicação de uma regra comum a todas as hipóteses:  a regra do bom senso.

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