"Pequenos empreendedores estão sofrendo", diz ex-presidente do TRT

Flavio Portinho Sirangelo
Jornal Zero Hora
23/02/2017

Flavio Portinho Sirangelo já esteve nos dois lados do balcão. Desembargador aposentado, foi presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4) e hoje é sócio do Souto Correa Advogados. Em entrevista, Sirangelo defende mudanças na legislação trabalhista e afirma que hoje os pequenos empreendedores são os mais prejudicados pelas normas defasadas.
Como você avalia a legislação trabalhista no Brasil?
O último relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aponta que no fim de 2015 estavam pendentes mais de 5 milhões de ações trabalhistas no Brasil. Há inúmeros fatores que levam a número tão alto. A legislação que regula as relações de trabalho se tornou de difícil compreensão. É muito grande, formada por conjunto enorme de normas. A Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) sofreu muitas alterações, principalmente com a Constituição de 1988 e a globalização. Mas foram criadas práticas sociais diferentes daquelas que as normas de conduta têm de nortear.
Isso gera dificuldade de aplicação e de observação rigorosa de um complexo normativo tão grande. Depois que uma relação de trabalho termina, pode ser gerada uma causa trabalhista. Isso está criando enorme passivo para o setor empreendedor. Principalmente os pequenos empreendedores estão sofrendo. Muitas vezes, uma ação trabalhista pode causar dificuldade tão grande que faz o pequeno empreendedor desistir do negócio. Assim, desemprega mais gente.

O que gerou tal situação?
A concepção da CLT foi baseada no emprego industrial, segundo o modelo fordista, sem trabalho com especialização. O contrato de emprego era previsto para tempo indeterminado, com regras iguais para todas as situações. O mundo não é mais assim. Há práticas diferentes que devem ser permitidas dentro dos padrões de respeito aos direitos dos trabalhadores. A lei hoje não aceita que haja acordos coletivos para estabelecer regras mais contemporâneas. Isso acaba gerando um custo muito grande.
Por exemplo: a categoria dos vigilantes reivindica jornadas de trabalho de 12 horas para ter 36 horas de descanso. Esses trabalhadores procuraram isso para se adaptar ao tipo de trabalho. Foi algo acordado entre sindicatos e empresas, mas muitas vezes desfeito em sentenças trabalhistas. Representa uma espécie de disfunção do sistema. O modelo antigo não consegue se adaptar a essas práticas novas. O projeto de lei que está começando a ser discutido no Congresso tem o mérito de tentar fazer o direito do trabalho ter mais sintonia com as práticas do mundo atual e mais liberdade de negociação. Isso, aliás, está previsto na Constituição de 1988. Mas até hoje há dificuldade de aplicar a lei. O projeto tenta reverter isso. É um dos seus grandes méritos.

O senhor defende a reforma trabalhista. Que mudanças deveriam ser feitas?
A adequação do sistema normativo a práticas mais correntes reduzirá a litigiosidade trabalhista e permitirá mais confiabilidade nas relações de trabalho. Com a dificuldade de aplicação da lei em relação a essas práticas mais atuais, o pequeno empreendedor tem de contratar um contador ou um advogado para resolver a situação desse ou daquele empregado.
A lei tem mais de 900 artigos. A CLT possui mais de 1,2 mil enunciados de súmulas, precedentes e obrigatórios da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Um dono de uma pequena lavanderia, por exemplo, tem de contratar um especialista para gerenciar um negócio com cinco ou seis funcionários. É um custo que não precisava existir. As leis não têm um fim em si mesmas. Têm como finalidade fazer com que as coisas funcionem. Isso é fundamental. Parece que o sistema foi criado para si próprio.

Algo positivo é que o judiciário trabalhista tem gestão muito eficiente porque se preparou. Essa é uma razão para que tenda a funcionar bem. Consegue ter índice de conciliação muito alto em relação aos outros setores do Judiciário. Cerca de 40% dos processos trabalhistas termina por acordos. O processo trabalhista fica lento quando não sai acordo em uma sentença com condenação, que muitas vezes é impagável ao empregador. O processo dura bem mais de dois anos porque não são encontrados meios de resolução para, principalmente, pequenas empresas. Mas isso tem acontecido também com grandes empresas, que entram em recuperação judicial porque não suportam os custos de operação, entre os quais, ações trabalhistas.

Outro fenômeno que o CNJ aponta é que os tribunais regionais do trabalho estão se transformando em estâncias de passagem para tribunais superiores. Em 73% dos casos trabalhistas, os processos sobem para o TST, em Brasília. Isso acontece principalmente por falta de funcionalidade de tratamento de todas as regras. É evidente que o sistema normativo está com problema. Um projeto de lei que visa simplificar e tornar as leis mais claras ajudará a reduzir a litigiosidade e seus custos.

O que na legislação trabalhista deve ser mantido?
O projeto de lei mantém quase todas as medidas. Só permite que, em determinadas situações, haja negociações coletivas. Há o exemplo da discussão sobre o intervalo do horário de almoço. A lei estabelece que o período deve ser de uma hora. Muitas pessoas preferem reduzir esse tempo e voltar mais cedo para casa. Houve acordos assim que foram desfeitos por sentenças. As empresas, então, recuaram.
As pessoas são obrigadas a cumprirem uma hora de almoço quando preferem ir mais cedo para casa. É preciso deixar que as categorias profissionais decidam o que é melhor para elas por meio dos sindicatos e de seus representantes. Na serra gaúcha, por exemplo, faz bastante frio no inverno, e as pessoas querem ir para casa mais cedo. É uma causa razoável, de fácil compreensão. Não há razão para ter uma lei que se aplique para todos em questões tão localizadas.

Dos 20 primeiros demandados do ranking de processos trabalhistas, nove são órgãos ou empresas estatais. Nem o governo consegue cumprir a legislação?
A União é a principal demandada no TST por dois motivos. A União busca pagamento de contribuições previdenciárias. E também é bastante citada porque pratica a terceirização em larga escala. Já as empresas estatais têm regulamentos próprios para os empregados. Isso gera outro mundo de ações trabalhistas, que é o dos trabalhadores altamente qualificados, ainda beneficiados pela aplicação de um direito para o trabalhador comum. Isso causa número gigantesco de ações trabalhistas.

Sou assinante
Sou assinante